30.11.07

Amo - vos a todos


















(e aos muitos que faltam por não ter registo fotográfico).

Salvador

Entrei por ti adentro em um dia de sol limpo e vi, todo o teu verde, o meu primeiro laranja, as invasões,antes periferias, as casas por rebocar, e a mata, tanta, toda a tua mata. Quando descia em ti, as casas eram piscinas em que me afundava e acordei no meio das tuas grandes, brancas, dunas.
Daí em diante... vi-me só, no centro de ti, abandonada nos teus arrabaldes. No morro história chorei e falei para longe, enquanto te abraçava até doer, agarrada à relva e ao azul. via os cavalos, os polícias, as pequenas caravanas e quiosques onde se refugiam dos teus turistas, dos teus pretos e pobres de passagem pelo centro, joguistas por um mundo melhor.
Provei o coco e o derby, bebi caju e cajá e soube que um deles me ia manchar. Desci a ladeira nos primeiros dias enquanto fugia do teu centro rebocado, evitei as vielas mal recomendadas e senti-me segura no teu corredor.
Brilharam-me os olhos com as grilhetas que te fecham um jardim, e a princípio, não vi as outras que te sufocam as gentes. Regateei na tua avenida, aventurei-me na sua paralela, provei o teu pão, o teu feijão, a tua comida, a tua pimenta, na rua.
Vi, sozinha, o teu, meu, primeiro espectáculo e só mais tarde entendi a tua representação. Minha cidade simulacro, inesplorada pleo meu desleixo e tão entranhada em mim.
Abandonei-te e voltei para ti, fiz do teu mar meu amante, banhei-me feita onça, vesti-me das tuas frutas e, para dormir, chita e as tuas cores. Vi no teu porto o reflexo de uma moeda espelhado em mim. Vi as histórias que contavam sem querer parar para as ouvir. As tuas tantas janelas por onde pula a sobrevivência embalada no café, mais água que pó, na banana, no pão fermentado e na cerveja de domingo, misturada nas quentinhas de sobras, nos trinta mil camelôs, em todas as fitinhas do bonfim.
A tua liberdade escrava no negro do tanto abaixado aos pés da gringa, submissa, dominada, dona e senhora pela força do pau.
A capoeira branca, a luta de praia e a dança negra, porque de algum lado tem que se tirar de onde viver.
Os teus pais, barcos, tudo velho tudo curvado sobre as redes de seja lá o que for. As tuas mães e avós, as tuas crianças e meninas precoces, a venderam cocadas, cachorros, bolos, bebidas e amor por todos aqueles que não podem comer. Os teus meninos professores, de olhos esgazeados e unhas cravadas em mim.
Os teus despreparos, as tuas armas, os teus quinze mortos de final de semana anunciados no jornal , lidos por quem não conhece os bairros, por quem nada vê e por tudo se assusta.
As tuas mamas tapadas por lei e cochas escachadas para o estrangeiro que há-de vir.
E o meu menino, o meu negro meio morto que dorme com a cadela e o comem os bichos, o meu negro de pulsos finos, encaixotado, que ainda não cresceu e que pouco come, que nos sonhos me continua a dar passagem enquanto desabriga as baratas debaixo dele.
A mim, ao meu samba e forró inventados e deslargados, que nunca hão-de ser teus.
E tu continuas aí, e nenhum de nós sabe se és mais mata ou cidade se é só nas feiras que os gatos morrem junto à carne de sol, se a tua jaca vale ouro ou real, se abrigas os deuses ou se apenas cruxificas todos os teus pobres diabos.

Ainda assim, parte de mim ficou aí...