22.2.12

de coração aberto,

dando o que posso, dizem os sábios, recebo a dobrar. E que razão! Assim de mãos em sangue de o portar, de peito rasgado e entranhas à vista, desdobrando o que eu sou em pano raso, em lenço de céu, a cada passo preparada para voar, para dar e transportar os outros no meu sonho. E olhos rasos também, de lágrimas de tanto amor que recebo, de todo o carinho amparo, de saber que nunca chega a queda, porque os braços são muitos para apegar. E nesse apego todo pronta a cada tempo para a partida. Coração balancé de tanto espaço tem o peito e tanta criança adulto nele a brincar. Coração em quartos, coração hotel, casa de repasto, cheia de famílias e pronto a refastelar. Coração sofá, transporte público de passe gratuito e vitalício, com lugar de prioridade para os meus velhos e para os grandes que disfarçam já não ser crianças de colo. Coração sem borboleta, de portas grandes e pintadas a mil mãos, coração de festa, coração grande salão. E quando falo com um a dizer que por ele também me poderia apaixonar, e pelo outro também, havendo só o espaço e luz entrevista do que se poderia receber e dar, percebo a resposta que me falta calar. Coração poeta, de tantos musos e estrelas, de tantas danças e paradas, de tanto querer e amar, de tão diferentes formas, diversas histórias, de contos, fábulas e documentais.  Um compêndio de mitologia, este coração artista, tem tritões, reis, meninos, bandidos e fantasias. E recebe, das mais amplas formas, tudo a dobrar.

17.2.12

Diz que é ali que vamos todos ver os monstros

Primeiro a bonança... e um dia bom, cheio de sol, com corações sedentos e bocas sedentas, dia de vinho branco, cor de luz e rio amarezado. Depois as noticias, seguidas de tudo o que se pode fazer- braços de polvo a chegar onde é preciso, ginástica de fala e esforço tremido, onde rolam apenas duas lágrimas. Uma apneia de contenção, um sentir manso a conter a dor bruta até mais não. Aguenta-se o segundo falado, o primeiro prático, o terceiro confessado. E vem, de repente, a menina, agora maior mas com os mesmos medos, o retorno de perder o retomado, a segunda volta triste de um disco tão parecido. Ocorre-te. Perder pela segunda vez, ela primeiro, tu, depois, claro. E a procura da cura, a tua, que a outra não controlas, sentir apenas o corpo. Desta vez, só, desta vez, mais uma, de novo, foder, não falar. Não há nada para resolver, mais que o programado não o podes fazer. Procura então o remédio, o teu, o alívio rápido da dor, a panaceia mais eficaz, mergulhar no corpo do outro até esqueceres a tua cabeça. No fundo, a pergunta de sempre, se tudo piorar o que vais fazer? Contra que parede te vais atirar para não doer, assim tanto, outra vez. O mal de muitos pais, ser perdedora. Todos os medos, num só, o de perder outra vez, menina, mulher, que mais se pode fazer. Curiosa de saber porque nunca aparece este remédio, porque nunca nestas noites te afundas um pouco mais e o quê no destino te protege de ti mesma. E saber que é só o impacto de não ter oração, de ter esperança, braços e força, mas ainda não saber a reza certa para te curar a ti, curando o outro antes. Agarrada às palavras, memorizas um mantra desta vez real, vai correr tudo bem.

16.2.12

Rapaz

Rapaz, vejo-te bonito. A cada dia, vejo-te bem. E assim me contenho para que não derreta, sei que a nada leva, nos meus olhos devo deixar escapar essa ternura de que revestes... fico mel por dentro, doce, embalada na tua voz tão bruta, pendurada na linha direita do teu nariz, perdida na barba densa, no sorriso, sorriso tão bonito. E assim fica decorado o castanho dos teus olhos, o teu gosto por pequenos almoços na cama e noites de pés felpudos e pernas quentes e enroscadinhas, a liberdade de gestos criado o espaço de amar. E enquanto adivinho os braços fortes escondidos nas malhas e ouço tudo o que é simples, adornado, enroucado, enriquecido no teu discurso, e quero me horas a falar, beijar e foder. A usar todos os termos e todas as práticas, assim sempre de mansinho. E foges-me com ressalva de rapaz de província, com desvios de conversa sempre de uma delicadeza extrema, engano-me que me dás mais caça, que um dia te apanho, porque, rapaz, mais um dia em que te vejo bonito, hoje mais um dia. E sem te encostar, espero mais um pouco pelo convite, e pelo dia passado entre o sol e onde a luz não entra, com cheiro a lareira, sem haver chama, só com o fogo brasa de nos querermos. Vejo-nos sempre assim, meiguinhos. E a ti, a cada dia te vejo bonito.

9.2.12

um mosqueteiro do amor

Lido o poema de um estranho, com o olhar nele pousado, desejar por um beijo, por momentos, a palavra em mim tão bem alinhada. E cada verso, ai,  um suspiro, um tremor, um bocejo de prazer, ser eu sua colina, ser corpo fecundo, ser eu o seu poema desejado. E perceber que, ai, este coração, deseja tanto o amor quanto ser amado. E que olhos tão doces e voz tão meiga, que mãos de menino e ar de amante, que partida tão súbita, que encontro breve, que esperança tão tola, que espera tão curta.
E no dia que vem, ao sol, trocar poemas e olhares demorados, como se o destino, de acaso composto, nos deixasse, a ambos, mais um dia juntado. Ai, este coração, deseja tanto o amor quanto ser o amado.

4.2.12

o vestido preto

Os dias maus começam sonhados por ti. E continuo sem perceber como algo tão fugaz me deixou tão gado tresmalhado, deixado por ti para trás. Os lutos não vêm e nunca anuncias dias auspiciosos, embora venhas com o sol. Mas és sol em pedra, mudo, e sem o som da tua voz não há pedaços de terra nem flores. Se o que sinto assinala, estou reclusa de mim mesma, se nada é, porém, quero me viúva, de tão negro me pões o coração. E os olhos escondidos atrás do sorriso, o gazeado negro que me cobre as vistas, não me priva da beleza, nem dos dias, mas quero me só, de cama para mim, presa ao minuto em que vens, tu que nunca te anuncias.
Anuncias apenas os dias maus. E num arauto de mim mesma, fico tão longe de mim como dos braços que nunca tive e prometo abandonar as secretas disposições e todas as teologias perdidas, as que pensei por ti e só por ti seguiria. Sedenta do teu beijo, sonho-o como o mais perfeito que seria e ponho o negro, para esquecer, ou lembrar, que nunca o tive nem nunca vou ter.