27.5.12

Maria sem medo

Com uma hora de sono, pouco mais ou pouco menos, os latidos acordam-me, alerta, resoluta, decidida. Revolta na cama levanto, pronta a tratar das portadas que ficaram por cerrar, levanto-me, uma, duas, três vezes. E ao fim de tudo, arrumo o  que fica por tratar, abro a porta a ver porque é o alarido. 
Saio e espera-me um universo de chilrear, um mundo de som e manhã, mal lavado pelos gritos grunhidos, rugidos de carros que sobem monte acima, da noite que passou. 
Saio e entendo.
Aqui de cima tenho o azul ovo do amanhecer. Tenho dias e mitos todos dias, há mesma hora a nascer. Tenho histórias pousadas na subida da minha colina, largada nos cantos que dia inteiro me acompanham.
Aqui de cima saio para ver o sol nascer e sou eu de sempre, sem medos, com muita rua, que não se acanha perante a luz que é, sempre foi, e de quem é, sua. 
Aqui em cima sou sem medo e sou cada dia da cor que se pinta. Escrevo com companhia. 
Aqui em cima estou só e sem nada que me falte. E cada dia descasco a camada deste fruto flor que me faz ir ao que mais intimo há em mim. Aqui em cima, como noutro lado, a embriaguez acontece e nada mais é do que isso, com a mesma facilidade, ébria ou nutrida me dispo aos olhos de quem quer ver.
Aqui em cima sou deusa, lua, manhã e descer, sou pequena e do tamanho de cada braço que me conter. Aqui em cima dependo de quem me deixar pender. E concretizo o que tiver que ser. Aqui em cima sou grande e do tamanho que tiver que ser. 
Aqui em cima sou eu, poeta, largada, solta, fluída e o que puder ser. 
Aqui em cima... 
Aqui em cima...
A minha colina é plena, os sonhos amplos e o futuro merecedor.
Aqui em cima...
Também eu tenho o meu estigma fundador.

12.5.12

3 3

Encasulado, em restauro, compondo as falhas e quebras, sem cuspe, esperma cola ou fluído doce para colar. Porque assim o desejo, porque o quero, para a adivinhação que antes de procurar já sabia que iria calhar, num hexagrama tão perfeito em capicua. Retirar.
Não por ti, não por outro, nem sequer por aquele que me iria salvar o coração, por mim, sossego. Sem negar o que vivi, sem dar o corpo ao mundo, o que nunca fez mal, mas não é agora a hora. Agora é tempo de madrugada, silêncio, de orvalho meiguinho e todos os bichos que respeito. É hora das fronteiras permitidas, de delimitar os caminhos, de verde clarinho e luz mansa. É a hora onde o coração hiberna numa primavera de sono levezinho e as mãos e a cabeça acordam para outros destinos. Onde só escolho profecias minhas e deixo os dias inundados por risos de crianças onde desperta todo o mimo, dias de cumplicidades perdidas e conversas boas ao entardecer, de silêncios longos e musica baixinha.
Dias tranquilos por escolha minha, onde num mutismo pertinente se redefinem os desejos sem que pense nisso. O corpo a despertar num respiro, entregue a todo o monte que rodeia ao mesmo tempo só seu em amor surdo. Tardes onde os abraços são longos mas raros e nas melodias sem letra se constrói novo espaço para um corpo que ao deixar de ser, existe. 
E respiro no mantra tranquila que não enuncio, respiro, é... tranquila sem procura, cada dia a ver-me bonita, corajosa, inteira, honesta. De sorriso por não precisar que ninguém mo diga. 
De sorriso porque sou parte da cor e do sossego onde estou, porque estou cada dia mais onde meus pés se encontram, porque me visitam abelhas, me protegem aranhas, me iluminam no meio da noite besouros. E não sei se falta muito para a pele se tornar da cor do que escrevo, e o coração quebrado, ficar verde e reflorestado em todo este mundo, mas vejo as linhas que a contornam cada vez mais vivas, na medida certa de saturação, e o peito entretido a semear sopas de letras com uma criança. Cabeça sementeira quando a levo pela mão e a boca, boca de gente, quer comida, luz, sol, pouca voz.
E de baba fininha e muitas palavras na cabeça, abandonada a mim mesma e certa do que, mais tarde, quero, ainda sem saber se do casulo sairá borboleta, gazela ou lince ou loba, sendo apenas grande e ibérico, pertença de quem vem do povo de atrás dos montes.