14.12.07


Ás flores

Vocês que mais que tudo
compreendem as re- voltas da morte,

que nascem, crescem, brotam, desfloram, secam.

Vocês que aceitam os dias e mandam nas estações,
curem os corações partidos pelas partidas súbitas,
ajudem a superar as dores difíceis que só o tempo cura.

Vocês que respiram sem se ver,
que portam a brevidade da beleza
e o valor da vida breve,
que ornam os caminhos e forram os caixões,
tragam conforto aos braços que os carregam.

Vocês que entendem que não há palavras
que exprimam as despedidas,

que tantas vezes servem de mensagem,
levem o que não se diz com condolências,
o que pêsames nunca exprime,
e protejam os ouvidos destas amigas agressões.

Vocês que se abrem quando prontas,
que sabem também se fechar,
dêem recolhimento a esta dor,
e acima de tudo, ajudem a curar.
Para B.

30.11.07

Amo - vos a todos


















(e aos muitos que faltam por não ter registo fotográfico).

Salvador

Entrei por ti adentro em um dia de sol limpo e vi, todo o teu verde, o meu primeiro laranja, as invasões,antes periferias, as casas por rebocar, e a mata, tanta, toda a tua mata. Quando descia em ti, as casas eram piscinas em que me afundava e acordei no meio das tuas grandes, brancas, dunas.
Daí em diante... vi-me só, no centro de ti, abandonada nos teus arrabaldes. No morro história chorei e falei para longe, enquanto te abraçava até doer, agarrada à relva e ao azul. via os cavalos, os polícias, as pequenas caravanas e quiosques onde se refugiam dos teus turistas, dos teus pretos e pobres de passagem pelo centro, joguistas por um mundo melhor.
Provei o coco e o derby, bebi caju e cajá e soube que um deles me ia manchar. Desci a ladeira nos primeiros dias enquanto fugia do teu centro rebocado, evitei as vielas mal recomendadas e senti-me segura no teu corredor.
Brilharam-me os olhos com as grilhetas que te fecham um jardim, e a princípio, não vi as outras que te sufocam as gentes. Regateei na tua avenida, aventurei-me na sua paralela, provei o teu pão, o teu feijão, a tua comida, a tua pimenta, na rua.
Vi, sozinha, o teu, meu, primeiro espectáculo e só mais tarde entendi a tua representação. Minha cidade simulacro, inesplorada pleo meu desleixo e tão entranhada em mim.
Abandonei-te e voltei para ti, fiz do teu mar meu amante, banhei-me feita onça, vesti-me das tuas frutas e, para dormir, chita e as tuas cores. Vi no teu porto o reflexo de uma moeda espelhado em mim. Vi as histórias que contavam sem querer parar para as ouvir. As tuas tantas janelas por onde pula a sobrevivência embalada no café, mais água que pó, na banana, no pão fermentado e na cerveja de domingo, misturada nas quentinhas de sobras, nos trinta mil camelôs, em todas as fitinhas do bonfim.
A tua liberdade escrava no negro do tanto abaixado aos pés da gringa, submissa, dominada, dona e senhora pela força do pau.
A capoeira branca, a luta de praia e a dança negra, porque de algum lado tem que se tirar de onde viver.
Os teus pais, barcos, tudo velho tudo curvado sobre as redes de seja lá o que for. As tuas mães e avós, as tuas crianças e meninas precoces, a venderam cocadas, cachorros, bolos, bebidas e amor por todos aqueles que não podem comer. Os teus meninos professores, de olhos esgazeados e unhas cravadas em mim.
Os teus despreparos, as tuas armas, os teus quinze mortos de final de semana anunciados no jornal , lidos por quem não conhece os bairros, por quem nada vê e por tudo se assusta.
As tuas mamas tapadas por lei e cochas escachadas para o estrangeiro que há-de vir.
E o meu menino, o meu negro meio morto que dorme com a cadela e o comem os bichos, o meu negro de pulsos finos, encaixotado, que ainda não cresceu e que pouco come, que nos sonhos me continua a dar passagem enquanto desabriga as baratas debaixo dele.
A mim, ao meu samba e forró inventados e deslargados, que nunca hão-de ser teus.
E tu continuas aí, e nenhum de nós sabe se és mais mata ou cidade se é só nas feiras que os gatos morrem junto à carne de sol, se a tua jaca vale ouro ou real, se abrigas os deuses ou se apenas cruxificas todos os teus pobres diabos.

Ainda assim, parte de mim ficou aí...

18.4.07

Sambinha de Orla

vá, batam o pé devagarinho e sintam o violão...

Na praia do porto
o corpo dourado,
a palavra morta
e a fome castrada.

Uma mão na areia
e outra na boca,
um pé cai no mar,
o outro se afasta.

O sol que não pões,
o olhar que não cansa,
o peito não dói
e a luz não abranda.

Ao ouvido chega
a prece daquele,
finge que não ouve,
que é como ele.

Na barriga cheia
tanto por saciar,
a baba, os princípios
a que me agarrar.

No fim do desejo,
tu que não estás cá,
na cabeça alheia
querem-me tomar.

E meu breu tatuado,
tanta fantasia,
no fim do teu dia
de novo a meu lado.

Em quantas palavras
tudo o que não faço
e bem entre as pernas
vontade de amasso.

Os dedos ascéticos,
a cabeça suja
e todo o amor
ganhando ferrugem.

Do consolo, os cabos,
da raiva, o mar,
do brilho, os trabalhos
e nas noites, deitar.
12deabril2007-dia60

27.3.07

AS DECISÕES A QUE O MAR ME OBRIGA


No dia em que escaldo os ombros Yemanjá leva-me a aliança. Os Orixás de novo trabalham juntos. Um vergasta-me com tudo o que deixo pendente, ela, a grande e carinhosa, anuncia o fim do amor romântico. Está morto, estão mortas as promessas que só eu a mim me faço, os e se e os para sempre, o térmito do aconchego e das desculpas folgadas agarrada à saudade e a um lençol.
Quero que exista hoje, com a consciência que estás para chegar. Que me baste, muito ou pouco, o que tenho, sem mais nada para agarrar.
Que não haja mentiras nem sonhos daqueles que só a mim me enganam ao os querer concretizar. Já não ficam no armário as tragédias de menina e, não te preocupes, não vou deixar de te amar. Faço o que um dia te disse que queria mudar, amadureço o meu amar. Agora podes saber que é uma mulher que te ama. E o próximo anel que seja um pedido, sem ter que o procurar.
Assim, dedo nu e cabeça fria. De anseios, as esperanças: um dia não ter que optar, a largura dos caminhos, os pés quentes, muita terra batida e no asfalto os livros a sublinhar.

24.3.07

CONFISSÃO EM TRÊS RECADOS





...ou: quando a garganta aguenta, as mãos fazem o trabalho
.


O mar hoje está cor-de-rosa. Lembra-me o homem mutável e todos os prazeres que não sei se guardo ou deixo para traz.
Pela primeira vez, o calor não é abafador e os meus braços arrepiam com o frio. Em todo o caso, nada importa. O espaço sim, o tempo não.

Continuo à espera das ligações de amigos, de respostas, comentários, e, principalmente, daqueles que me rejeitam. Como esses se tornaram importantes. Acredito ainda nos convites a longo prazo, para projectos futuros pendurados no passado. De promessas que até podem ser quebradas, dos abraços que ficaram por dar.

Se a chuva aqui é miudinha e aí já chegou a primavera, pergunto-te se ainda não encontraste a flor que me deves. Quanto tempo mais vais remoer a distância que não sentes por ninguém, as histórias que nem chegaram a acontecer. Como de repente passaste a dar um gesto em vez da mão e se alguma vez fingiste a irmandade que agora pareces esquecer.
Se cometi algum erro, foi levar-te a sério tempo de mais. Contudo, prefiro acreditar que o afecto é maior e que tudo voltará a ser melhor que antes. Se me julgas é porque nunca me chegaste a conhecer. Apenas encheste o ego e a barriga ao partilhar as tuas festas comigo e com os outros.
Um dia quero saber que me engano. Que nos enganamos os dois ao pensar. E, entre risos e bagaço, olhares cúmplices de dois que podiam ser irmãos, o orgulho estampado nos sorrisos, adivinhando que, mais uma vez, podemos crescer os dois juntos, sem que agora sejas só tu a ensinar.



MANIFESTO CORPO MULHER



Descobri os verbos dos meus desenhos. Eu quero. Eu posso.
Encontrei o prazer de me olhar nos olhos dos outros e a tolerância nos ouvidos combativos. A vontade está nos meus braços e a força entre as pernas.
O gosto na minha boca é ser mulher, mas no sorriso guardo um tesão de homem.
Nas obrigações, os direitos: recusar um galanteio, beijar os amigos, passear com estranhos em nenhures e declinar os convites que me amordaçam a barriga. Nos cabelos, todas as ideias que um dia irei cortar. Nas unhas, o resto das feras que enfrento ao casar o lobo e a virgem que fazem da cabeça coração arena de lutas e campo de amassos. Os cotovelos ficam afiados com tudo o que evito dizer e a língua amolece ao segurar o entusiasmo com os dentes. No peito, levo a crença de que tudo sou capaz. Nas mãos, a cura e nos punhos a liberdade. Pés que caminham sempre em frente com a guita no tornozelo, puxando, puxando a casa. Ter as costas quentes de trabalhos e a garganta aberta para os gritar. Juntar o rabo acomodado aos joelhos que não querem parar. Nos dedos todos os cálculos, dedilhando um no próprio prazer. Na pele todo o sol, todo o mar e toda a vida que é suor. No sangue, dever de amor-livre, ser tua, escolha minha, e o rubor numa caixinha até voltares.