23.10.13

Pai

Nos primeiros anos, vínhamos todos,  no dia marcado, com flores. Falávamos, chorávamos, tudo sincero e sentido. Verdade.
Depois, um a um, indo e regressando, fomos abandonando o barco, remando a outras terras. 
Entretanto, eu voltei, e já há dois anos que vou, uns dias antes, sozinha, ver-te, limpar-te a morada... desta vez nem a mãe veio no fim deixar-te flores... vim cedo demais, antes de viajar, e ela virá noutro dia, mais próximo, como manda a tradição, pelo menos a nossa.
Gosto disto, deste sossego, de varrer com afinco enquanto te falo em silêncio. Peço-te pequenas ajudas e orientações.
Já não estranho a tua falta, vivi mais tempo com ela do que contigo. Com o tempo foste-te tornando numa memória prezada, uma herança emocional com valores passados, um pouquinho de dor e saudades. Muitas, mas saudades de uma pessoa quase ficcional, um personagem composto meio pelas histórias, meio pelas memórias de uma criança que não larga. Os cheiros, o do teu cachimbo, o sentido de um colo que tive. As imagens,  em movimento cada vez mais difusas e a tua cara que relembro pelas fotografias. A voz que vou repescar de tempos a tempos à trilha onde brevemente andaste. 
Um elemento emocional, num conto do que seria, que seria assim tudo tão diferente. 
Seria?
Não sei se te orgulhas de mim, as dúvidas que disso sinto quando te visito indicam-me que nunca me senti tão perdida. Ou talvez já, mas nunca é tanto como o presente, não é?
As visitas que te faço de ano a ano são um bom barómetro de rumo e comportamento.
Pesam-me as falhas, sempre do mesmo, do respeito, do ânimo e da constância. Talvez também da complacência. 
Resta-me andar, nestes dias, para a frente. Esperar que o caminho me encontre a mim se eu assim não o encontro. Que me indique o que tenho que abandonar e retomar.
Mas resta-me muito.
Deixaste-me, a mim e aos nós que são sempre os mesmos, muito amor. Não nos deixastes sós.
E este mundo, todos os dias, traz um pouco de trabalhos e um pouco de prazer.

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